- abril 18, 2017
Dr. Francisco Cavalcante Mangabeira – Parte III
Hiram Reis e Silva, Bagé, RS, 15 de abril de 2017.
Meu Deus, como me é grato, nesse desterro, ver árvores e ouvir ninhos! Como eles cantam! Que agradável que é a sua música. (Francisco Mangabeira)
Já entrado em suas primeiras manifestações intelectuais, em 1894, Francisco Mangabeira iniciou, aliás com ostensivo desânimo, o curso superior, matriculando-se no primeiro ano de medicina, na Faculdade da Bahia. As ciências eram adversárias de seu gênio poético, e, desse primeiro ano, a física médica, como especialidade esta, foi um temeroso Adamastor. (DINIZ)
Adamastor: figura mitológica criada por Luís Camões que encarna os perigos, as tempestades, os naufrágios e “perdições de toda sorte” que os portugueses enfrentaram nas suas náuticas viagens. (Hiram Reis)
DINIZ: Mas, Mangabeira, cujo talento moderado, balanceado com o igualmente brilhante de seu irmão João Mangabeira, na evidência de Deputado Federal, pela Bahia, em iteradas (repetidas) legislaturas, era triunfante, se impunha já no círculo de seus contemporâneos. Ao lado de Antero Valladares, moço de desenvolvidas aptidões intelectuais, desaparecida infelizmente antes dos vinte anos; de Gustavo Kelsch, que se recomendava pela sua grande leitura e pela sua maior biblioteca, posta ao alcance de todos os colegas; de Raphael Pinheiro, cuja oratória já encantava como os albores de um dia eternamente primaveril; de Anatólio Valladares, ainda há pouco falecido nesta cidade, sempre na intimidade máxima dos irmãos Mangabeira; de Methódio Coelho, de Vital Soares, de Achilles Lisbôa e de outros muitos, entrou na convivência social do “Grêmio Evolução” (1893-1895), sociedade lítero-científica, que funcionou, com brilho real, até ser o primeiro paraninfo, em 1894, da estátua de Castro Alves, só erigida, não obstante velho desejo de todos, em 1923, na capital da Bahia, como uma das cerimônias comemorativas do centenário de sua independência política.
Francisco Mangabeira não gostava de discursar. Era a antítese de outros elementos da sua própria família. No meio das grandes celeumas oratórias, ele se limitava a apartes conscienciosos, à meia voz, de preferência sempre ao lado dos mais calmos e refletidos. Já estava um artista feito, e mantinha todo o silêncio em torno de seu nome. Mas, de perto, muito de perto, recebia as melhores estimulações de um outro poeta: Pedro Licínio, de valor incomparavelmente muito menor, tanto quanto se apagou de todo com o correr dos anos. Era este a companhia infalível de Francisco Mangabeira, a apoiar-lhe os êxtases estéticos e a ovacionar-lhe os ritmos caprichosos de poeta inspirado pelo amor. Desses tempos, é o soneto abaixo, datado de 1894, só muito mais tarde divulgado, e, finalmente, incluído como a página mais antiga e uma das mais simples do seu volume “Últimas Poesias”, de publicação póstuma:
Desabrochando
(Francisco Mangabeira)
É muito moça ainda… Mesmo agora
Lhe nasce a flor dos seios inflamados.
Seus lábios purpurinos, como a aurora,
São de beijos e risos constelados.
Face infantil, onde a alvorada mora,
Dando-lhe uns tons brilhantes e rosados…
Olhos, cujo fulgor tudo colora
De lampejos trementes e doirados.
Parece uma ave, que se alou, há pouco,
Desdobrando, em suave desarranjo,
Um canto alegre, descuidado e louco…
E um novo céu no brando olhar se esboça
Desta criança transformada em anjo,
Ou deste anjo transformado em moça!
Poesia dos quinze anos, com a data de 1894, positivamente não é um lavor de arte. Mas, como primícias de uma ascensão artística, significou uma realidade logo, porque ficou sendo, sem dúvida, uma página de efetiva poesia. Ao seu tempo, quando o artista tinha olhos para ver e sentimento para compreender o desabrochamento da alma naquele corpo de mulher, em que ainda nascia “a flor dos seios inflamados”, a física médica, matéria tormentosa do primeiro ano do respectivo curso, atravessava-se na sua passagem, atrasando a marcha progressiva de sua carreira, pois sofrendo os famosos rigores do grande professor Anselmo da Fonseca, não tinha Francisco Mangabeira coragem para investir…
Contudo, foi além… E, quando, no decurso do ano de 1897, os sertões do Norte baiano se assolaram com o flagelo da luta fratricida, conhecida por “Guerra de Canudos”, cursava o poeta o 3° ano de medicina. Assim, a 27.07.1897, partiu, com a primeira turma de acadêmicos, que seguiram para o campo da luta ingratíssima. Naquele incidente, que tanto se prolongou cancerosamente, porque, mercenários da dignidade do Exército Nacional, erigiram em viveiro de enriquecimento as trincheiras e as colunas das forças legais, os serviços gratuitos da mocidade contaram com o apoio e a iniciativa de Francisco Mangabeira. E lá esteve ele, onde compôs quase todo aquele grandioso poema, cujas estrofes mais belas, pejadas sempre de bizarra originalidade, se “escrinisaram” no volume da “Tragédia Épica”, como já se adiantou, trazida a lume em 1900. É deveras (verdadeiramente) original o poemeto “Os três oficiais”, de data muito anterior à Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas, onde, em colóquio, três moços, não contam os seus amores, mas relatam os seus valores de família.
Ei-lo:
Os Três Oficiais
(Francisco Mangabeira)
Noite… No acampamento rumoroso
Conversam descuidados
Três moços oficiais. Um diz:
– Meu berço
É o mais maravilhoso,
Que pode haver! Nasci nos descampados
Que a ventania agita
Em montanhas de pó no azul disperso…
Doce terra bendita,
Coberta de planícies assombradas,
Que são atravessadas
Pelos fortes gaúchos em cavalos
De patas vigorosas.
Oh regiões amadas
Onde passei tranquilo e sem abalos
A infância, que saudades
Profundas sinto agora
Dos teus pampas, teus Rios e cidades
Onde é mais frio o vento
E as mulheres mais lindas! Onde a aurora
No inverno limpa o céu todo nevoento
E no verão colora
De oiro (ouro) e luz o radioso firmamento!
Contigo eu aprendi, desde criança,
A arrostar toda a sorte de perigo
E a enterrar uma lança
No peito do inimigo.
Salve, terra dos Pampas, onde a vida
Corre agitada e boa,
E o gaúcho viaja alegremente,
Sem pesares e à toa,
Num animal valente,
Com o lenço no pescoço
E um enorme chapéu de aba caída,
Resguardando-lhe o rosto.
Passa a vida sem sobra de desgosto:
De manhã, muito cedo,
Depois dum leve almoço
De mate ou charque, monta e vai sem medo
Desbravando as savanas…
Descansa em casas pobres, onde moram
Honestos lavradores
E morenas serranas
Que, sem mágoas e dores,
Vivem placidamente e nunca choram.
Quer no inverno sem tréguas,
Quer no verão ardente,
Ele viaja assim léguas e léguas,
Partindo duma estância
E pernoitando noutra. Seus cuidados
Cifram-se unicamente
No cavalo fogoso que ergue as patas,
Numa indomável ânsia,
Levando-o por planícies e por matas
A uma grande distância…
Terra santa e querida, onde os soldados
Passam a vida inteira
Viajando nas cidades e povoados
Que existem na fronteira…
Minha terra natal, eu te saúdo
Com os olhos lacrimosos
Porque em ti deixei tudo
Quanto amei nos meus dias venturosos…
Em ti ficou aquela
Que há de ser minha, o anjo
Em cuja face bela
O firmamento abranjo…
A minha pobre noiva! tão formosa,
Tão inocente, angélica e morena
Que tem na face o aroma duma rosa
E o candor duma pálida açucena…
Tão linda que semelha
Uma linda espanhola
Em cuja boca trêmula e vermelha
Desabrocha a corola
Do beijo… Minha noiva e meu tesouro!
Consolar-me quem há de
Nas horas em que choro
De mágoa e de saudade
Por essa criatura a quem adoro
Como uma divindade?
Ai! o que me alivia
É a certeza que tenho
De que ela pensa em mim muito medrosa
Por saber que me empenho
Nas lutas sem temor como fazia
Na fratricida guerra
Que há pouco se acabou, manchando o solo
De minha nobre terra…
Ela receia ainda
[E é este o meu consolo]
Da intrepidez infinda
Com que às negras batalhas me atirava,
Enfrentando o inimigo nas guerrilhas
Ou nos grandes combates pavorosos…
O brio que eu mostrava
Se acaso uma cidade sitiava
Ou defendia-a em ímpetos raivosos,
Fazendo maravilhas
De bravura. Somente no passado
É que fulge e se encerra
Meu extinto prazer que foi gozado
Nas paragens sem fim da minha terra.
Calou-se o oficial e olhou, com mágoa,
O céu, talvez que vendo novamente
O passado. E seus olhos de repente
Ficaram rasos de água.
O companheiro diz-lhe:
– Meu amigo,
Que é isso? Está chorando?
Console-se comigo
Que também vou saudades suportando.
Sou das bandas do Norte,
Daquelas vastas zonas
Onde pompeia (viceja) caudaloso e forte
Um Rio enorme e túrbido: O Amazonas.
Palavra ! tenho inveja desse Rio,
Despótico senhor daquela plaga
Por onde rola rápido e bravio
Inundando paragens
Que, impetuoso, alaga.
Nasce lá no Peru, vê paisagens
Que parecem quimeras:
Florestas colossais onde os fulgores
Do Sol ao chão ainda não chegaram,
E onde vagam indômitos selvagens,
Enraivecidas feras
E cobras multicores.
Que em suas margens, sequiosos, param.
Nele há ilhas virentes (verdejantes)
Todas cheias de flores
E pássaros de plumas resplendentes…
Como não é soberba a madrugada
Às margens desse oceano
Que os homens chamam Rio:
A passarada
Em cantos sedutores
Vai despertando; as árvores enormes,
Douradas pelo sol, tremem e lançam
Suas sombras informes
Nas águas que de leve se balançam;
Caem flores e frutos
No chão; as onças erguem-se; os macacos
Pulam entre os cipós tortos e fracos;
Insetos zumbem; rútilas serpentes
Deslizam, rastejando
Entre folhas; e os rudes índios brutos.
Enfeitados de penas reluzentes,
Quedam-se, com assombro, contemplando
O sol que lança um fúlgido tesouro
Sobre a copa das árvores acesas.
Às vezes vê-se uma serpente, um touro,
Um animal que abandonou a toca,
A contemplar imóvel de surpresas
Alguma pororoca.
A pororoca assombra a todo mundo,
Tão estranha ela é. Enorme ruga
Surge a face das águas, incha, aumenta,
Qual uma desmedida tartaruga,
Que, saindo do fundo
Do Rio, à tona dele se apresenta…
Ruge, desliza, corre, voa e toma
Um volume espantoso; já parece
Estranho mastodonte
Que, pouco a pouco, assoma
No Rio; desenvolve-se, escurece
Tudo em torno, doudeja, e qual um monte
Que rápido se racha, e treme, e tomba,
Ela desaba num rumor de fragoas…
Dir-se-ia que se arromba
A terra; as naus afundam-se nas águas,
Que voltam logo à calma acostumada.
Pois bem, nessa região maravilhosa
E privilegiada
Nasci… Ah minha mãe! com que amargura
Revejo a minha vida desditosa
E sinto que a ventura,
Por ser-nos boa, é falsa e mentirosa.
Minha mãe é uma santa
De cujo olhar na doce transparência
Radioso se levanta
Um astro que me leva
Em meio à negra e carregada treva
Da noite da existência!…
O mel de seu sorriso
Embriagou a minha adolescência,
Que foi um paraíso
Repleto de prazeres.
É a melhor das mulheres,
Tem a alma pura como os jasmineiros,
Que derramam no espaço
Deliciosos cheiros.
Lembra-me ainda quando, à noite, unidos
Num apertado abraço,
Olhávamos no Rio refletidos
Os brilhos do luar que irradiava…
A forte correnteza
Parecia que aos poucos se abrandava
Numa ignorada e mórbida tristeza,
Que nos arrebatava…
Como que andavam almas
De crianças, de monges e poetas
Por sobre as águas calmas,
Onde o luar batia recordando
Um enxame de argenteas borboletas.
Ainda eu sinto no meu rosto o pranto
Que ela derramou, quando
A abracei entre lágrimas… Ah! quanto
A ausência martiriza
O coração que sofre e que precisa
Dum consolo qualquer às suas penas…
Ontem eu tinha tudo que queria,
Agora tenho apenas
A saudade que o peito me crucia…
Mas… para que ressuscitar pesares?
Sabem? Vou terminar. Nasci no Norte
Em uma regido imensa e rica
Que tem um Rio gigantesco e forte,
Florestas seculares,
Serpentes colossais, feras hediondas,
Lindos pássaros e índias espantadas,
De amplas formas redondas…
Terra ardente que fica
Nas linhas do equador incendiadas.
Há nela seringais de onde se tira
Toda a variedade de borrachas…
Eu sou filho daí e é por meu gosto
Que me acho com Vocês nesta campanha,
Sereno e resoluto,
De espada e de bombachas.
Com o sorriso no rosto
Termina, e o seu olhar vago acompanha
A fumaça alva e leve do charuto.
Principia o terceiro assim: Nascemos
Na mesma terra, amigos…
No entretanto que extremos,
Que diferença em nossos inimigos!
O de um é o inverno frio,
O do outro é um grande Rio,
O meu é o sol. Nasci nas terras onde
Impera às vezes um verão que abrasa,
Secando as águas das fontes…
A seca é um triste quadro:
Os horizontes
Muito azuis sem a flecha duma asa;
No campo o gado como que se esconde
Em busca de água, e, sequioso, morre;
Nas árvores, despidas
De ramagens, a luz do sol escorre
Como o pranto radioso dos espaços.
Mulheres inanidas
Com os filhinhos nos braços
Atravessam a estrada enlouquecidas,
Comendo galhos secos e raízes.
As pobres criancinhas
Já nem podem chorar, e as infelizes
Mães para o firmamento
Erguem o olhar, exaustas e mesquinhas.
Após tanto tormento
Morrem pelas estradas,
Numa